Wednesday, March 14, 2007

Cântico Negro

Cântico Negro, versão MacCoy

“Vem por aqui” – dizem-se uns com olhos de carneiro mal morto
Como que a achar que lhes vou ligar alguma coisa
“Vou por aí é o caralhinho” digo-lhes já farto
É que já nem os estou a ver bem
Estou cheio destes cansaços
E cruzo os braços
E nunca vou por ali...

Eu curto mesmo é isto
Trocar-lhes as voltas…

Não, bolinha baixa que não vou por aí
Só vou para onde me levam estas botas da tropa compradas na feira
Se o que o mano aqui quer saber de nenhum de vocês sabe
Por que é que não desaparam a loja com esse “vem por aqui”?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos do bairro da Tina
Levar com uma bruta chuvada e vendaval nos cornos
Arrastar-me pelo chão até sangrar
A ir por onde vocês me querem levar

Se vim ao mundo foi
Para partir esta merda toda
E desenhar com mijo na areia inexplorada
E o mais que faço não vale nada

E agora acham que são vocês aí armados em mete-nojo
Que me vão dar aquele speed e coragem
Pró menino aqui derrubar os seus obstáculos?

Vocês parecem uma cambada de velhos
E amam o que é fácil, é o que é!
Eu amo o que vocês não veem ou sequer sonham chaval
Amo o salto para o nada, o desconhecido, o deserto tás a ver

Vá, xô.. A andar daqui para fora
Têm as vossas vidinhas, os vossos empregos
A vossa casinha já com mais 50m2 que a do melhor amigo
E mais um pijama para o segundo filho, num cor-de-rosa mais escuro de um anterior
Têm as vossas rotinas, as vossas estradas, os vossos caminhos iguais
Têm as vossas regras e códigos, os vossos ídolos e líderes demais
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a com um facho, a arder na noite escura à porta da Kapital

E sinto a espuma da cerveja nos lábios
Ninguém aqui guia coisa nenhuma, só Deus e o Diabo
São é todos uns grandas meninos da mamã
mas eu, que não principio nem acabo
Quero é que as merdinhas me passem ao lado

Ah, que não me chateiem os cornos com intenções
Não me venham cá agora pedir opiniões
Epá, é que ninguém me diga “Vem por aqui”
A minha vida é aquele furacão dos estados unidos que já não me alembra o nome
É um tsunami ali daqueles mêmo lixados
É mais uma daquelas merdas que as células têm que dão power a um gajo
Não sei por onde vou
Não sei para onde vou
Sei é que não vou por aí e quero é que vá tudo de embute…




Cântico Negro, versão José Régio

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

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